quinta-feira, outubro 10, 2013

“ O que ela quis dizer?” OU “Cadê a objetividade que estava aqui?”

6:30h, despertador. Bom dia com beijo na filha. Chama mais uma vez (porque ela volta pra debaixo do cobertor). Faz um suco, esquenta um pãozinho pra ela comer, sonolenta. Pega os caronas, leva todos pra escola. Chega em cima da hora pra aula de yoga: ooom! Uma passadinha em casa. Bom dia pra outra filha! Um rápido café da manhã, organiza o almoço, troca a roupa, responde a um email. Escritório. Mais emails, contratos, telefone, reunião. Ich! Já são 13:00h! Volta pra casa, almoça quase em pé. “Vamos, filha, vai chegar atrasada”. Escova os dentes, cata uma barrinha de cereal para o lanche. Mais um trânsito, deixa a pequena na escola, um beijo e “divirta-se”! E volta pro escritório. Mais contratos, consultas, pesquisas.  Telefone, telefone. Outros e-mails. E já escureceu! São 18:45h, a pequena está acabando a aula de ballet. Chega esbaforida, a aula já acabou. “Calça o tênis, veste o casaco, tá frio lá fora”. Oba! Pão de queijo quentinho na padaria e pra casa, finalmente. E então  hora do banho, arruma a mesa, organiza o jantar. E pra mais velha: “chega de internet”! 

Mas de repente... tudo se acalma. A mais velha estuda no quarto. A pequena brinca de bonecas no outro quarto. Marido ainda nem chegou... Será possível? Uma poltrona só pra mim! Controle remoto exclusivo e melhor: comédia romântica começada. Culpada: A-D-O-R-O! E é justo o gracinha “Cartas para Julieta”! [1]




Paisagens lindas na Itália, a alegria frenética de New York.  Love is in the air. Mas a paz dura pouco, é claro...

- “Mããae!  Vem aqui?”

- “Pode vir você, Paulinha”?

E ela vem!

- “O que você tá vendo?”.

-“Um filme bem lindo”!

-“Posso ver também?”

E não é que ela pode?! Nada proibido para pequenos, só romance e lugares bonitos, em breve a cena de uma linda festa de casamento no campo!

-“Senta aqui do meu lado”.

E então a mocinha do filme (Amanda Seyfried) percebe que seu noivo (Gael Garcia Bernal), chef de cozinha nova iorquino, já não é o amor da sua vida. O inglês que está na Itália (Chris Egan) roubou seu coração. Ela chega de surpresa ao restaurante do noivo e avisa que vai ao casamento dos amigos (Vanessa Redgrave e Franco Nero) na Itália, sozinha. Ele, percebendo a seriedade do assunto, esvazia a cozinha, ficando a sós com a amada. E então começa aquele papo : “Não é com você, amo o teu jeito, mas não está funcionando. Eu mudei, blá, blá, blá”.


A pequena Paula, do alto dos seus 5 anos, concentrada, atenta à cena, ao diálogo. E então vira-se pra mim, põe a mão em segredo no meu ouvido  - para os atores não ouvirem, certamente – e me pergunta baixinho:

-“O que ela quis dizer?”

- “ Que está acabando o namoro, Paulinha. Ela não vai mais ser a namorada dele”.

- “ Mas ela disse que amava e abraçou ele!”

E eu (já achando que foi uma tremenda bobagem deixar que ela me acompanhasse no final da comediazinha romântica!):

-“ Pois é. Acontece que não dá mais certo, eles são muito diferentes”.

E ela, tentando entender esta estranha e contraditória lógica:

-“ Ah! Naquele lugar, pra namorar, tem que se igual, assim, cabelo loiro com cabelo loiro!”.

E aí acabou toda a minha vontade de ficar sozinha, de relaxar na poltrona e ser a dona do controle remoto! Lembrei imediatamente porque adoro - e não posso desperdiçar jamais- a companhia das filhas, sempre que me chamarem ou que quiserem estar ao meu lado.

O relax veio da risada, em total desopilada ao final de um dia cansativo. Abracei a Paula, rimos juntas. Ela meio sem saber o porquê, mas adorando!

 E aí veio à minha cabeça uma inevitável pergunta:

Cadê a objetividade, a espontaneidade e a franqueza que estavam aqui? Que bicho comeu isso tudo, que morava na criança que fomos?

Se você dá um recado, falando das coisas do coração, principalmente, e alguém precisa perguntar: “o que ela quis dizer?”, alguma coisa não funcionou como deveria... Por que as pessoas se abraçam e sorriem quando gostariam apenas de dar um recado mais simples, objetivo, as simple as: não te amo mais ou não quero mais estar com você!?

Todo mundo costuma romantizar, dizendo que quando crescemos perdemos a pureza e a ingenuidade das crianças. Mas e o contrário? Já deu uma pensada em quantos sorrisos você deu quando queria, no fundo do teu coração, só mandar alguém procurar sua turma (isso se você for muiiito educado) e sumir da tua frente?

Agora, se vai dar pra alguém seguir a objetividade da Paulinha nos seus relacionamentos, sejam afetivos, sociais e profissionais, não sei não... O mais provável é que não dê. Os sorrisos amarelos continuarão a imperar, sem falar dos tapinhas nas costas, dos discursos moles e vazios, sempre com a desculpa de “não quero ofender” ou “não sei bem como dizer”.

Mas que é uma delícia exercitar e ficar imaginando como seriam a vida e os diálogos, no dia a dia, se tudo o que houvesse a ser dito, fosse dito e se ninguém precisasse, nunca, perguntar: “o que ela quis dizer”... Ah, isso é.
Tem coragem de sequer imaginar?



[1] Letters to Juliet é um filme norte-americano de romance lançado em 2010, dirigido por Gary Winick. Estrelado por Amanda Seyfried, Chris Egan, Vanessa Redgrave, Gael García Bernal e Franco Nero.
Data de lançamento: 14 de maio de 2010 (Estados Unidos)

sexta-feira, setembro 20, 2013

E se for uma emergência muito grande?

Doce ilusão a de quem acredita que com o segundo filho tudo é mais fácil! Achar que as perguntas mais complicadas já foram respondidas, que já mergulhamos uma vez no universo das cabecinhas de 3, 4, 5 anos e pronto: com o próximo o pacote já vem feito.

Até pode ser que a gente se sinta mais leve, descolado e capaz de ser criativo nas respostas. Mas as perguntas mais difíceis - pode crer! - veem sempre no momento e da maneira mais inesperada.

Falar sobre o abstrato, o oculto, a espiritualidade já é difícil pra quem passa toda uma vida estudando e pensado sobre o assunto. Imagina pra pai e mãe, com uma criaturinha de 4 anos.
 

Mas dessa vez eu escapei e assisti tudo de camarote. A vítima foi o André, meu marido.

 
A gente costuma revezar o papel de fazer companhia, contar uma história ou conversar um pouco com a Paula na hora de dormir. Uma noite dessas era o André que estava lá, deitado no chão do quarto, esticando as costas e batendo um papo com a Paula. Saí do banho e vi que o papo corria solto, percebi o André meio vacilante, ganhando tempo pra achar respostas.
 

Fiquei do lado de fora, ouvindo um pouco daquela conversa – e dando muita risada!
Peguei o papo na hora em que o André respondia:
 - “Não, Paula, acho que ele não tem uma forma, assim como as pessoas ou os bichos”.

E ela:

- “ Mas como assim? Ele existe e eu não posso ver?”.

- “É, não pode ver. Mas você pode às vezes sentir que Ele está ali perto, te ajudando, te protegendo”.

E aí saquei que o tema era Deus. Ôôô papinho complicado... Ufa! Deixa essa com o pai... E fiquei ali, de butuca. E a coisa continuou.
- “Mas onde que ele mora”?

- “ Ele não mora em nenhum lugar, mas em todos os lugares ao mesmo tempo”.

“ Ah, tá.... .”  – e fez uma pausa.

- “Mas pai, eu não sei como Ele é, não posso ver, não sei nem onde mora – e se for uma emergência muito grande?”.

Foi uma risada só: o André no quarto, eu ali fora!
Virginiana como é, objetiva e certeira: ela queria um “0800” ou um email pessoal! Essa abstração toda, sem rosto nem endereço, não convenceu... As “emergências muito grandes” podem mesmo aparecer. E se Ele tem mesmo o poder que todo mundo fala, está ali pra olhar e proteger, não ter pra onde nem quem ao certo chamar pareceu não funcionar no Universo da Paula.
O André não teve muito como sair dessa. Desconversou, falou de um livrinho, disse que já era tarde.

Mas é aquela coisa. Os assuntos pra Paula são de certa forma bumerangues: vão embora por um tempo e logo, logo estarão de volta.
Então ela mesma resolveu, depois de uns dias, nos contar como era Deus:

- “Já sei! Ele é como a luz do sol. É uma luz bem grande!. A gente pode sentir o calorzinho de qualquer lugar que a gente tá!”.

E não é que gostei dessa analogia? O que a gente mais quer, num momento de “emergência muito grande”, não é sentir um calor forte, uma luz que nos ilumine e nos mostre o caminho?

Dentro de sua necessidade de objetividade, ela chegou lá. E por enquanto é isso. E é mesmo mais do que suficiente pra ir formando sua própria noção de espiritualidade.

Mas garanto: se alguém aí disser que tem um endereço ou um "0800", a virginianazinha vai preferir!! Ah, se vai!

segunda-feira, setembro 02, 2013

"Mãe, você vai me amar pra sempre, até quando você for avó dos meus filhinhos?"

É incrível como pegar o carro pra ir a qualquer lugar é um hábito (péssimo habito!) de quem vive em Curitiba. Quando a gente viaja, pra qualquer canto, o natural é justamente o oposto: caminhar o máximo possível, de um lugar pra outro ou sem rumo, "flanando", olhando casas, jardins, vitrines, conversando ou então curtindo os sons da cidade, quem sabe parando pra um café. E por que não fazer isso em casa, rompendo o ciclo da locomoção em quatro rodas e “pernas pra que te quero”? E não estou falando da caminhada pra se exercitar, pela ciclovia ou no parque, mas do passeio a pé, por aí. Sei, sei... tem o tempo cinzento e a falta do novo, da curiosidade por conhecer que motiva as caminhadas. Mas nem sempre é assim! Se a gente prestar a atenção há provavelmente mais dias gostosos do que cinzentos e a cidade é mais dinâmica do que parece das janelas do carro.

Então, no último sábado de agosto, lindo e ensolarado, decretei o dia de fazer o necessário a pé, levando minha filha Paula, de 4 anos, como minha companheira. E não foi uma voltinha na quadra, não! Foi um passeio que durou mais de 2 horas e do jeitinho que a gente faz quando viaja: parando pra ver um quintal bem cuidado, um ipê que começa a florir ou catando uma florzinha do chão; decidindo comer um brownie ANTES do almoço numa chocolateria nova (sim! há um monte de lugares novos no bairro que passam despercebidos!); entrando em algumas lojinhas de rua pra comprar presentes pros aniversariantes da semana (sim! há comércio bacana fora de shopping!); olhando vitrines e lojas de decoração pra inspirar um quarto mais colorido pra Paula. E no meio disso tudo, cantando de vez em quando, porque coisa deliciosa é caminhar de mãos dadas com a filha e cantar.

O resultado foi um percurso de uns 2km em que a Paula não reclamou NENHUMA vez de cansaço. Ela adorou a experiência de explorar tudo a pé, parando onde dava vontade e me fazendo companhia, tagarelando, contando novidades, perguntando... E tem jeito melhor de conversar com uma criança do que passeando por aí, sem pressa nem rumo exato? Tudo bem que nos trajetos de carro a gente também conversa. Mas a atenção maior é para o trânsito, tem o rádio quase sempre ligado e o papo não é de mãos dadas, olho no olho ou então olhando juntas pra mesma coisa que nos encante. É uma proximidade diferente e só quando a gente experimenta é que se pergunta por que demorou tanto a fazer!

O melhor de tudo é que a sensação não foi só minha: a Paula voltou pra casa numa alegria imensa! E olha que foi um passeio que não teve outras crianças, nem parquinho, jogo eletrônico, nem shopping, cinema, teatrinho e nem mesmo um ambiente especial na natureza, como mata ou mar. Foram só uns 10 ou 12 quarteirões, no nosso bairro e no bairro vizinho, mas com a atenção voltada uma pra outra, sem horário pra chegar a lugar algum.

A volta pra casa foi alegre e surpreendente. A Paula não ligou a TV, não brincou no IPad, não pediu um DVD. Ajudou a arrumar o quarto, a separar uns brinquedos e continuou as conversas, tranquila. Mais tarde, me convidou para um lanche, de repente me deu abraço bem gostoso e perguntou:

 "-Mãe, você vai me amar pra sempre, até quando você for avó dos meus filhinhos?"

Compreendi que esse era o jeito de uma figurinha de 4 anos expressar sua vontade de eternizar o momento. Acho que nunca recebi uma declaração de amor tão espontânea em forma de uma única pergunta! Então respondi com a mesma singeleza e verdade que marcaram o nosso dia:

- "Sim, para sempre. Amor de mãe é assim".

E alguém duvida?

Dormi especialmente leve. E prometi a mim mesma ampliar a quantidade de momentos como este, em que o simples prazer da companhia em passeios e caminhadas sem rumo certo seja o bastante para preencher um dia. E se você é daqueles que gosta de caminhar, a gente se vê, então, batendo pernas por aí.

quinta-feira, agosto 29, 2013

“Mãe, quando eu crescer, vou ser assistente deste "padre prefeito", tá bom?”

Acho que eu tinha uns 9 ou 10 anos quando o Papa João Paulo II visitou o Brasil. Lembro bem da euforia! Mesmo estudando em escola judaica, todos os meus amigos e eu sabíamos de trás pra frente a musiquinha : " À benção João de Deus, nosso povo te abraça, tu vens em missão de paz, sê bem vindo e abençoa este povo que te ama!" Lembram?

Parece que neste ano de 2013 a vinda do Papa Francisco causou comoção parecida! E o Papa argentino é mesmo uma gracinha, cheio de carisma.  E pelo menos aqui em casa, inspirou ideias.
Uma noite dessas, ao final do Jornal Nacional, a Paula brincava na sala quando parou tudo o que estava fazendo pra me anunciar:

- " Mãe, quando eu crescer, vou ser assistente daquele "padre-prefeito", tá bom?”

Na hora, não entendi o que ela queria dizer e pedi que repetisse o que mesmo ela pretendia ser:
- "Assistente daquele padre-prefeito que tá sempre na TV, mãe! "

Claro que dei muita risada! Minha primeira reação quase foi começar a explicar que isso não era possível. Primeiro, porque além de mulher, ela é judia, o que é uma combinação não muito óbvia para o perfil do cargo. Mas não precisou mais do que 10 segundos pra eu perceber que alguém que tem 4 anos não precisa desta explicação, até porque essa verdade está longe de ser absoluta. Ou alguém aí imaginava, há uns 20 anos, que veria um presidente negro nos USA e uma mulher no cargo mais alto do FMI? E verdade seja dita: ter um "móvel" com seu nome é puro glamour! Ninguém além do Papa e do batman tem este privilégio! Então, nem ousei discordar da escolha da Paulinha.

Uns minutos depois, a brincadeira de legos estava de volta e não se falou mais no assunto. Acontece que as coisas com a Paula não acabam assim, sem mais nem menos. Quando menos se espera: eco! Sabe como aqueles "rabichos" de filme, curtinhos, que aparecem depois dos créditos e são quase sempre geniais?
Estávamos almoçando, num domingo, quando a Paula anunciou:

-"Decidi que não vou mais ser assistente do "padre Francisco".
E eu:

- "É mesmo, Paula? E já escolheu outra coisa?"
Claro que ela já tinha escolhido. E não só uma, como duas coisas:

- "Ou vou ser a fada do dente ou caixa de supermercado".
Mais uma vez a risada foi inevitável. E de novo, contive aquela reação quase natural (ou pelo hábito da profissão!) de explicar que a fada do dente não existe e que caixas de supermercado ganham muito mal, além de possivelmente esta ser uma profissão em extinção, a ser substituída por terminais de pagamento automático.

E assim vou aprendendo que "conter-se" às reações instantâneas é um exercício obrigatório pra tornar o diálogo com as crianças rico e as deixarmos formar sua personalidade. A final, quantos têm a coragem e a felicidade de escolher seus caminhos e suas profissões movidos apenas pela vontade de seu coração, seu dom ou vocação? Uma escolha genuína, sem pensar se seria muito difícil chegar lá, se o retorno financeiro seria pequeno ou se decepcionaria alguém? Quantos???
Então, eu me restringi a dizer que o legal mesmo é escolher o que nos deixa feliz. Enchi minha pequena de um monte de beijos, abraços e esmagos e tomamos sorvete juntas, enquanto eu torcia, dentro de mim, que ela seja uma das poucas nesta contabilidade pobrinha de pessoas com escolhas autênticas. Amén!

terça-feira, agosto 27, 2013

O mesmo livro. Muitas histórias!


As pequenas cidades do litoral podem ser muito especiais no inverno. Nas últimas férias pude aproveitar vários dias frios, porém azuis e ensolarados, numa praia de Santa Catarina, sul do Brasil, em companhia de meu marido e nossa filha Gabriela, de 4 anos. É a mesma praia que frequentamos nos verões, de águas claras e tranquilas, mas pouca gente circula, a brisa é constante, as crianças vão à praia de roupa. Há um charme e uma calma que não existem no verão. O sol não castiga, ninguém se sente obrigado a passar o dia todo na areia e então sobra tempo pra muita coisa. Há tempo para uma boa refeição, preparada por toda a família. Há tempo para dormir fora de hora. Há tempo para ler.
 
 
Apesar de cada dia ter sido diferente, acabamos criando uma rotina pela manhã cedo e outra no início da noite. Pela manhã, dávamos um longo passeio de bicicleta à beira mar. No início da noite, sentávamo-nos num Café em frente à praia para tomar um café ou chocolate quente, folhear revistas e ler para nossa filha alguns dos livros da pequena biblioteca, à disposição dos clientes do Café. Enquanto o chocolate quente era preparado, escolhíamos os livrinhos de contos de fadas clássicos. Eu lia os livros escolhidos e Gabriela acompanhava as ilustrações e o ritmo das histórias, fazendo comentários divertidos em suas passagens prediletas.

Na terceira noite já havíamos lido todos os livrinhos infantis do Café, alguns mais de uma vez. Gabriela, então, resolveu que seria ela quem “leria” as historinhas para mim. Achei uma ótima ideia (apesar de ela ainda não saber ler). E assim foi naquela noite: escolhidos três livros, começou a “ler” as histórias para mim. Sem interromper ou corrigir deixei que ela “lesse”. Eu ainda não sabia que começaríamos naquele Café uma experiência muito especial.
                     
Com um tom narrativo e muitas vezes mudando o timbre de voz nos diálogos entre os personagens, minha filhinha acompanhava as ilustrações, “lendo” as aventuras que eram contadas a partir de sua privilegiada memória, aliada à criatividade e à imaginação que apenas crianças de pouca idade são capazes de ter. Muitos dos desfechos que eram tristes passaram a ser divertidos. Personagens que eram malvados se redimiam ao final em lugar de serem punidos. Os reinos ganhavam nomes e cores. Nos banquetes dos bailes eram servidas sobremesas de chocolate. Protagonistas ou palavras de alguma historinha eram inseridos de uma maneira super habilidosa em outra. O último livro daquela noite foi Ali Babá e os Quarenta Ladrões e Gabriela “leu” assim a parte em que Ali Babá descobre a caverna:
 
“Ali Babá passeava pelas montanhas quando viu um grupo de muitos homens em frente a uma caverna. Um dos homens, com jeito de chefe, parou na frente da caverna e disse “abra-cadabra-pelo-de-cabra!”– e então uma grande mágica aconteceu”.

 
Naquele momento eu percebi que Gabriela estava mesmo “lendo”, partilhando histórias a partir das páginas dos livros e do significado de informações acumuladas em seus pouco mais de 4 anos. Era a mesma história, sob outra ótica, por outras palavras. Afinal, “abra-cadabra-pelo-de-cabra” é uma palavra tão mágica quanto “abre-te-sésamo”. E embora o texto original do livro não usasse a palavra mágica, o que significa caverna se abrindo além de um grande passe de mágica?

No retorno das férias tivemos a sensação de que os livrinhos da biblioteca de casa se haviam multiplicado! Passamos a ler histórias já conhecidas juntas, mais de uma vez na mesma noite. Eu lia a versão original, Gabriela lia o livro a seu modo. Às vezes repetia exatamente o texto que havia escutado, como estivesse realmente lendo, letra por letra. Outras vezes dava à ilustração a interpretação que o desenho lhe transmitia. O final podia ser o tradicional ou outro, completamente inusitado!
 
Passamos a fazer a mesma coisa com os livros trazidos semanalmente da biblioteca da escola e nossas sessões de leitura antes de dormir tornaram-se momentos únicos. Agora, a novidade é que invertemos a ordem da leitura quando a história é inédita: primeiro a Lelinha vê a capa e contra-capa do livro, passa as páginas, observa as ilustrações e “lê” a história como imagina que seja. Em seguida eu leio o livro, ela acompanha as ilustrações e damos muitas gargalhadas ao comparar as versões do autor e a que ela “leu”. Se já sabíamos que uma história pode ser contada de muitas maneiras, aprendemos que o mesmo livro pode contar diferentes histórias. Basta que uma criança tenha em mãos um livrinho e uma boa companhia.




quinta-feira, novembro 29, 2007

Feia, Velha e Estressada: eu??


A mãe, para uma pequena menina, é tudo o que há de bom e de melhor! A mamãe é cheirosa, divertida, seus cabelos são o máximo, não existe mulher mais maravilhosa no mundo. Arrumada para ir a uma festa, então: não tem nem pra Cinderela! Beijos, abraços, elogios que vêm do coração e inflam o ego de mãe, de mulher.

Mas uma dia, de repente, quando a pequena é ainda pequena, mas já tem enorme sensibilidade para perceber o mundo, a mãe vira velha, feia e estressada!

Comigo foi assim: numa semana só, tudo isso e de sopetão! Da primeira vez, estávamos no carro, a caminho de uma festinha e a Gabriela tentava ler a placa com o nome de um restaurante, em letras cursivas. Desistiu e perguntou:

“-Mamãe, o que é aqui”? “

“- O Scavollo – respondi - um restaurante”.

“ – E é bom?”

Respondi que não sabia, porque frequentava aquela pizzaria quando tinha uns 15 ou 16. Foi na orelha:

“ – Ah! Quando você era jovem!!”.

Não resisti: “- Como assim, Gabriela? Eu ainda sou jovem!”

E veio outra na orelha:

“ – Sinto ofender, mamãe, mas você já está mais pra mais velha do que pra jovem”.

Passou. Engoli essa com farinha.
Mas aí veio a segunda, também no carro. Brincávamos de associação. Uma dizia uma palavra e a outra rapidamente dizia a palavra que vinha na cabeça, em associação com o que tinha ouvido. E assim fomos: rato - queijo, praia - mar, escola-criança, advogada - computador. Mas nesse ponto a Lela me interrompeu:

“- Não mamãe, advogada – estresse”.

E neste fim de tarde eu estava mesmo tão estressada que não esbocei reação!

A última veio numa hora de almoço e começou com um comentário daqueles, em tom de pergunta, que nunca sei onde vão dar...

“ – Engraçado, né? Aqui em casa é tudo diferente, ao contrário, vocês não acham?.

Fui obrigada a perguntar:
“ – Como assim, Lelinha, diferente em quê?"

Ela foi direta:

“ – Diferente no pai e na mãe. Na casa dos meus amigos, normalmente o mais feio é o pai, que ou é careca ou usa bigode, é mais gordinho. E aqui em casa, o pai é o bonito! Não que você seja horrorosa, mamãe, mas pra linda também não dá... E o papai, se tivesse um concurso, ele seria o “miss pai”.

Espera aí! Ela só tem 6 anos e até antes de ontem mamava no meu peito, pulava no meu pescoço pra cheirar o meu perfume, ficava maravilhada com o novo corte de cabelo, os saltos altos, os banhos de espuma na banheira mais divertidos no que qualquer parque de diversões. E mais: eu só tenho 36 anos, continuo com meus menos de 50 quilos e...

Por quê, então, velha, feia e estressada numa só semana?
Baixei a rotação, absorvi todos os comentários e vieram as inevitáveis perguntas: Como é que eu me enxergo? Que imagem, de dentro de mim, vê a minha filha?
Então tudo ficou evidente. As crianças - ainda mais das sensíveis e espertas como é a Gabriela – podem ser mais realistas do que um espelho. Duras e cruas, é verdade, mas leem mais do que a imagem, porque leem sentimento, leem estado de espírito. E não têm bloqueio ou receio para falar o que veem, o que sentem e percebem ao seu redor.

Paro um pouco para refletir, com o distanciamento em relação a mim mesma, necessário para apenas olhar, sem julgar (ou pelo menos não muito). E na real, percebo que parei de praticar yoga, não tenho a paciência que deveria para ir ao salão dar um trato nos cabelos, passei o último ano trabalhando 2 dias da semana fora da cidade, acabei ficando muito magra e os banhos de banheira e brincadeiras de corda com a Gabriela já não são tão frequentes. E pensando bem, talvez aos 6 anos eu também julgasse velho alguém com 36 anos. Já o “miss pai”: ainda bem que isso Freud explica!

Amanhã volto a praticar yoga, decidi retomar uma rotina de curtições com a Gabriela durante o tempo em que temos juntas e hoje cortei os cabelos. Por fim, tomei coragem: marquei hora no terapeuta! Porque o relógio, já não dá pra parar, agora: bonita e de bem com a vida, fica mesmo mais fácil encarar que os 15 ou 16 anos já ficaram muito lá atrás. Mas que tem muito de bom no que é hoje e no que está ainda por vir!

segunda-feira, novembro 21, 2005

Quem é o maior da nossa família?


Abraçar uma filha é sempre delicioso. Mas o abraço na hora de dormir, quando você a cobre, deseja boa noite, bons sonhos e dentro do coração agradece pela felicidade de compartilhar todos os dias da companhia dessa pessoinha maravilhosa, é ainda mais especial. Talvez para expiar a culpa que alguns dias sinto por ficar o dia todo longe ou talvez por simplesmente sentir um enorme prazer, criei a rotina de sentar-me ao lado da cama da Gabriela e conversar, e cantar, e ler histórias para fazê-la dormir. Toda noite é a mesma coisa. E toda a noite é tão bom...

Desde que a Gabriela era um bebê criei o hábito de ler livrinhos pra ela. Passamos juntas as páginas, olhamos as ilustrações, eu leio, ela comenta. E não tem hora mais gostosa pra apanhar um livrinho do que a hora de dormir! Como sua atenção fica aos poucos mais presa a historinhas maiores, resolvi inovar e pela primeira vez lemos um livro em capítulos. Foi o delicioso Bem do seu tamanho, da Ana Maria Machado, com divertidas ilustrações da Mariana Massarani.

O momento da leitura passou a começar bem antes: na hora do jantar, com negociações demoradas sobre quantos capítulos leríamos naquela noite. Por alguns dias seguidos nossa rotininha da hora do sono ficou ligada àquele livro e as fascinantes aventuras da menina que queria descobrir se era grande ou pequena. Ao final dos sete capítulos, a Gabriela ficou quieta, pensativa. Não interferi, percebendo que aquela história de tamanho tinha perturbado um pouco suas ideias. Quando dei o beijo de boa noite veio a exclamação: “Já sei, mamãe, eu sou média”.

A conclusão foi divertida, já que ser médio pode mesmo ser a definição para quem tem 4 anos e, portanto, é pequeno demais pra algumas coisas e crescidinho o suficiente pra outras. Não me contive e perguntei: “Se você é média, o que eu sou?”. De sopetão ela respondeu: “Grande, oras”. Mas eu provoquei e perguntei sobre o tamanho do papai. A Lela coçou a cabeça e mudou de ideia: resolveu que ela era a média das crianças, eu era a média dos adultos e o papai era o grande dos adultos.

Dei uma gargalhada e a enchi de beijos apertados. Mas o papo não parava por aí. Ela queria saber quem era o maior da nossa família. Então foi a minha vez de responder de sopetão: “acho que é o papai”. Mas ela discordou, achando que o maior de todos era o Davizão, o namorado da vovó. E foi neste momento que a história que serviria pra embalar o sono a despertou de vez. A Gabriela sentou-se na cama e me perguntou:

“Ih mamãe, mas o Davizão é da nossa família???”.

E agora? Esta era uma daquelas em que não dava tempo pra pensar! Respondi que na verdade, tecnicamente, ele não era. Mas que por ser o namorado da vovó, nos o poderíamos considerar da família. Um turbilhão de pensamentos correu pela minha cabeça e me deparei com outra novidade, outra diferença enorme entre as nossas gerações, que a final de contas eram separadas por menos de 30 anos. Os novos conceitos de família eram parte da nossa vida, eram absolutamente naturais à Gabriela e a toda a sua geração. A tia que mora com o tio é tão tia quantas as tias casadas com outros tios! O marido da tia já era tio da Gabriela enquanto eles moravam juntos - e não se tornou mais tio apenas porque eles resolveram se casar. E o namorado da avó é realmente mais da família do que tios e primos que pouco frequentamos.

Já era tarde e os bocejos não a deixaram continuar. Ela apenas se permitiu encerrar a conversa, sem precisar de maiores explicações, respondendo às dúvidas com seus próprios sentimentos:

“Eu acho que o Davizão é da nossa família e ele, então, é o maior”.
Apaguei a luz (não antes de uns cafunés e beijinhos) e adorei a ideia de trazer pro nosso conceito de família as pessoas que queremos tão bem.