quinta-feira, agosto 29, 2013

“Mãe, quando eu crescer, vou ser assistente deste "padre prefeito", tá bom?”

Acho que eu tinha uns 9 ou 10 anos quando o Papa João Paulo II visitou o Brasil. Lembro bem da euforia! Mesmo estudando em escola judaica, todos os meus amigos e eu sabíamos de trás pra frente a musiquinha : " À benção João de Deus, nosso povo te abraça, tu vens em missão de paz, sê bem vindo e abençoa este povo que te ama!" Lembram?

Parece que neste ano de 2013 a vinda do Papa Francisco causou comoção parecida! E o Papa argentino é mesmo uma gracinha, cheio de carisma.  E pelo menos aqui em casa, inspirou ideias.
Uma noite dessas, ao final do Jornal Nacional, a Paula brincava na sala quando parou tudo o que estava fazendo pra me anunciar:

- " Mãe, quando eu crescer, vou ser assistente daquele "padre-prefeito", tá bom?”

Na hora, não entendi o que ela queria dizer e pedi que repetisse o que mesmo ela pretendia ser:
- "Assistente daquele padre-prefeito que tá sempre na TV, mãe! "

Claro que dei muita risada! Minha primeira reação quase foi começar a explicar que isso não era possível. Primeiro, porque além de mulher, ela é judia, o que é uma combinação não muito óbvia para o perfil do cargo. Mas não precisou mais do que 10 segundos pra eu perceber que alguém que tem 4 anos não precisa desta explicação, até porque essa verdade está longe de ser absoluta. Ou alguém aí imaginava, há uns 20 anos, que veria um presidente negro nos USA e uma mulher no cargo mais alto do FMI? E verdade seja dita: ter um "móvel" com seu nome é puro glamour! Ninguém além do Papa e do batman tem este privilégio! Então, nem ousei discordar da escolha da Paulinha.

Uns minutos depois, a brincadeira de legos estava de volta e não se falou mais no assunto. Acontece que as coisas com a Paula não acabam assim, sem mais nem menos. Quando menos se espera: eco! Sabe como aqueles "rabichos" de filme, curtinhos, que aparecem depois dos créditos e são quase sempre geniais?
Estávamos almoçando, num domingo, quando a Paula anunciou:

-"Decidi que não vou mais ser assistente do "padre Francisco".
E eu:

- "É mesmo, Paula? E já escolheu outra coisa?"
Claro que ela já tinha escolhido. E não só uma, como duas coisas:

- "Ou vou ser a fada do dente ou caixa de supermercado".
Mais uma vez a risada foi inevitável. E de novo, contive aquela reação quase natural (ou pelo hábito da profissão!) de explicar que a fada do dente não existe e que caixas de supermercado ganham muito mal, além de possivelmente esta ser uma profissão em extinção, a ser substituída por terminais de pagamento automático.

E assim vou aprendendo que "conter-se" às reações instantâneas é um exercício obrigatório pra tornar o diálogo com as crianças rico e as deixarmos formar sua personalidade. A final, quantos têm a coragem e a felicidade de escolher seus caminhos e suas profissões movidos apenas pela vontade de seu coração, seu dom ou vocação? Uma escolha genuína, sem pensar se seria muito difícil chegar lá, se o retorno financeiro seria pequeno ou se decepcionaria alguém? Quantos???
Então, eu me restringi a dizer que o legal mesmo é escolher o que nos deixa feliz. Enchi minha pequena de um monte de beijos, abraços e esmagos e tomamos sorvete juntas, enquanto eu torcia, dentro de mim, que ela seja uma das poucas nesta contabilidade pobrinha de pessoas com escolhas autênticas. Amén!

terça-feira, agosto 27, 2013

O mesmo livro. Muitas histórias!


As pequenas cidades do litoral podem ser muito especiais no inverno. Nas últimas férias pude aproveitar vários dias frios, porém azuis e ensolarados, numa praia de Santa Catarina, sul do Brasil, em companhia de meu marido e nossa filha Gabriela, de 4 anos. É a mesma praia que frequentamos nos verões, de águas claras e tranquilas, mas pouca gente circula, a brisa é constante, as crianças vão à praia de roupa. Há um charme e uma calma que não existem no verão. O sol não castiga, ninguém se sente obrigado a passar o dia todo na areia e então sobra tempo pra muita coisa. Há tempo para uma boa refeição, preparada por toda a família. Há tempo para dormir fora de hora. Há tempo para ler.
 
 
Apesar de cada dia ter sido diferente, acabamos criando uma rotina pela manhã cedo e outra no início da noite. Pela manhã, dávamos um longo passeio de bicicleta à beira mar. No início da noite, sentávamo-nos num Café em frente à praia para tomar um café ou chocolate quente, folhear revistas e ler para nossa filha alguns dos livros da pequena biblioteca, à disposição dos clientes do Café. Enquanto o chocolate quente era preparado, escolhíamos os livrinhos de contos de fadas clássicos. Eu lia os livros escolhidos e Gabriela acompanhava as ilustrações e o ritmo das histórias, fazendo comentários divertidos em suas passagens prediletas.

Na terceira noite já havíamos lido todos os livrinhos infantis do Café, alguns mais de uma vez. Gabriela, então, resolveu que seria ela quem “leria” as historinhas para mim. Achei uma ótima ideia (apesar de ela ainda não saber ler). E assim foi naquela noite: escolhidos três livros, começou a “ler” as histórias para mim. Sem interromper ou corrigir deixei que ela “lesse”. Eu ainda não sabia que começaríamos naquele Café uma experiência muito especial.
                     
Com um tom narrativo e muitas vezes mudando o timbre de voz nos diálogos entre os personagens, minha filhinha acompanhava as ilustrações, “lendo” as aventuras que eram contadas a partir de sua privilegiada memória, aliada à criatividade e à imaginação que apenas crianças de pouca idade são capazes de ter. Muitos dos desfechos que eram tristes passaram a ser divertidos. Personagens que eram malvados se redimiam ao final em lugar de serem punidos. Os reinos ganhavam nomes e cores. Nos banquetes dos bailes eram servidas sobremesas de chocolate. Protagonistas ou palavras de alguma historinha eram inseridos de uma maneira super habilidosa em outra. O último livro daquela noite foi Ali Babá e os Quarenta Ladrões e Gabriela “leu” assim a parte em que Ali Babá descobre a caverna:
 
“Ali Babá passeava pelas montanhas quando viu um grupo de muitos homens em frente a uma caverna. Um dos homens, com jeito de chefe, parou na frente da caverna e disse “abra-cadabra-pelo-de-cabra!”– e então uma grande mágica aconteceu”.

 
Naquele momento eu percebi que Gabriela estava mesmo “lendo”, partilhando histórias a partir das páginas dos livros e do significado de informações acumuladas em seus pouco mais de 4 anos. Era a mesma história, sob outra ótica, por outras palavras. Afinal, “abra-cadabra-pelo-de-cabra” é uma palavra tão mágica quanto “abre-te-sésamo”. E embora o texto original do livro não usasse a palavra mágica, o que significa caverna se abrindo além de um grande passe de mágica?

No retorno das férias tivemos a sensação de que os livrinhos da biblioteca de casa se haviam multiplicado! Passamos a ler histórias já conhecidas juntas, mais de uma vez na mesma noite. Eu lia a versão original, Gabriela lia o livro a seu modo. Às vezes repetia exatamente o texto que havia escutado, como estivesse realmente lendo, letra por letra. Outras vezes dava à ilustração a interpretação que o desenho lhe transmitia. O final podia ser o tradicional ou outro, completamente inusitado!
 
Passamos a fazer a mesma coisa com os livros trazidos semanalmente da biblioteca da escola e nossas sessões de leitura antes de dormir tornaram-se momentos únicos. Agora, a novidade é que invertemos a ordem da leitura quando a história é inédita: primeiro a Lelinha vê a capa e contra-capa do livro, passa as páginas, observa as ilustrações e “lê” a história como imagina que seja. Em seguida eu leio o livro, ela acompanha as ilustrações e damos muitas gargalhadas ao comparar as versões do autor e a que ela “leu”. Se já sabíamos que uma história pode ser contada de muitas maneiras, aprendemos que o mesmo livro pode contar diferentes histórias. Basta que uma criança tenha em mãos um livrinho e uma boa companhia.